Olho do furacão

Estava no olho do furacão, perto de entrar em cena.Taquicardia, medo, morte, vida, suor e sangue no corpo, tudo ao mesmo tempo agora. Dançar é este absoluto poder do agora que é efêmero.Finalmente em cena, a música começa e de repente é interrompida abruptamente, meu corpo absolutamente sinestésico e a alma totalmente nua, leva uma porrada que quase me derruba em cena, na presença de todos, todos os olhares convergindo, concentrados em mim. Numa fração de milésimo de segundo me recuperei e parei solenemente, olhei para o público e esperei, e deixei as coisas se resolverem por si mesmas. Quando a música retorna, eu não era mais a mesma ,o fato é que já tinha sofrido uma mutação genética publicamente. Era a sequência coreográfica de outra coreografia, em outro corpo que se recuperou de um choque e estava pronto para o desconhecido. Dancei sem medo, mas tudo o que planejei e fiquei horas e dias ensaiando e delirando, foi para outro lugar. Errei as coreografias,criei novas modulações rítmicas e dancei o meu avesso, errando publicamente, errando lindamente, por que já caminhei sobre o abismo do inusitado e da imprevisibilidade de tudo. E fui assim mesmo, morrendo e nascendo à cada passo. A platéia totalmente comigo, absorta encantada e eu sei entender, onde havia de beleza no que não era para ser dito, mas que uma falha trágica técnica, me fez dizer sem saber que no fundo era o que precisava ser dito. Quando finalizei a apresentação, fui muito, muito aplaudida. Saí igualzinho um fantasma, como assim? Voltei depois e contei para os meus amigos o que tinha acontecido, só havia admiração, ninguém percebeu nada. E eu fiquei com aquela imagem de Arjuna no Bhagavad Guita, quando ele pára e diz que não vai mais lutar e recebe o privilégo de ser guiado pelo próprio Deus Krishna, ele decide voltar a lutar com a orientação de Deus. Estou pensando no quanto esta apresentação me ensinou sobre a verdadeira dança que é sair do controle e deixar o mistério guiar os meus passos.Ensaios, treinamento e estudo faz parte da nossa vida de artista, mas tem um lugar misterioso que é quando Deus dança e vira uma experiência, é literalmente viver o mistério.

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