"DOR E GLÓRIA"

Fui assistir o filme do cineasta Pedro Almodóvar. Estava com um amigo e empolgados com a beleza do filme comentamos algumas cenas, acho que num tom acima do permitido. No auge da nossa empolgação esquecemos do tempo e espaço. Um casal que estava ao nosso lado ficou completamente imbuído de raiva. Nosso silêncio foi instantâneo, afinal eles estavam cobertos de razão. Mas o que chamou a nossa atenção foi a raiva deles,o homem até desferiu um sonoro palavrão para nós. Ficamos questionando após a sessão, como que uma pessoa vai ao cinema assistir uma obra de arte que na minha sincera opinião tem uma função de despertar nossa fome de humanidade, beleza, poesia, ou seja lá o que for que amplie a dimensão do humano, sinta tanta raiva por se incomodado, ele estava certo,nós concordamos,mas justifica tanto ódio? Quando foi que ficamos tão intolerantes? Quando a falta de gentileza ficou tão alarmante que falar com doçura da falha do outro virou artigo de luxo? Fiz uma conexão na hora com o livro que estou lendo, Diários da escritora, crítica de arte e ativista dos Estados Susan Sontag (1933-2004) publicados após a sua morte, pelo seu filho David Reff. Ela escrevia diários, desde a adolescência, segundo ele, ela deixou uma quantidade significativa de escritos particulares. Eu adoro ler diários e cartas.No prefácio do livro, David Rieff, nos conta que quando Susan Sontag era muito jovem foi à Grécia, e assistiu à Medéia, num anfiteatro no sul de Peloponeso.A experiência a emocionou profundamente por que, quando Medéia estava prestes a matar os filhos, várias pessoas na platéia começaram a gritar: " Não faça isso, Medéia! " Aquelas pessoas não tinhas a menor ideia que estavam assistindo uma obra de arte". Isso aconteceu nos anos 50 e neste momento Susan Sontag acalentou minha alma, quando refletiu sobre o que pertence à natureza real e ao que é território do imaginário e me parece que estamos precisando de mais sonho e poesia para desconstruir esse entorpecimento dos sentidos e não é só na arte, acho que é toda um conceito de vida baseado em consumo, dinheiro, poder, muitos espaços para ter e fazer e poucos lugares para ser e conviver. Eu entendo um ser humano como alguém que tem uma história, memória,emoções, coração e medo, apesar de nada justificar a violência. . Defendo uma civilização que valoriza o ser humano o projeto existencial de cada um e o sentimento de pertencimento. A televisão não pode ser o coliseu que transforma em espetáculo a raiva alheia. O que vejo são corpos rígidos e desesperados, que estão pedindo socorro, sofrimento ao vivo e a cores na nossa tela em alta definição. Eu espero que a revolução seja no ser humano, no seu corpo, na sua alma. Eu desejo que trabalho, educação, saúde, moradia e transporte sejam prioridades para que cidadãos possam sentar numa grande praça (ágora) como os Gregos faziam ( desta vez sem escravos) e que possam pensar a nossa existência, nossa ação no mundo. Sentir raiva não é ruim, a questão é como expressar com consciência. Nós humanos não sabemos lidar com os nossos sentimentos e ponto. Apesar de tanta pesquisa feita para entender o nosso inconsciente e as pesquisas sobre a corporificação no corpo das emoções, o ser humano ainda precisa se conhecer, perceber o outro, compreender e aceitar as diferenças. A população precisa ter acesso a ferramentas para sentir o copo, participar da vida dentro de sí mesma. Ampliar as possibilidades de viver no seu corpo e parar de apertar tanto botão, vivenciar o seu tempo na terra com plenitude. Quando eu já estava me perguntando como nos disse Cazuza "porque que a gente é assim?", resolvi fechar o notbook e flanar. Perto de minha casa tem um caminho lindo, enfeitado com árvores, é uma passarela cercada por elas, eu me sinto recepcionada por elas,converso, abraço, enfim, me relaciono com elas. Neste momento apareceu um homem, um desconhecido que me disse:" Vamos subir na árvore?", eu parei atônita e ao mesmo tempo respondi tudo bem, mas suba você primeiro, nesta conversa e brincadeira de subir na árvore brotaram muitas risadas. Eu acabei agradecendo a ele por continuar sendo vivo e autêntico, e ele me disse que estava feliz por aquele momento raro. Engraçado mesmo, eu comecei o dia refletindo sobre nossa intolerância e entorpecimento dos sentidos diante de uma obra de arte e me acontece isso, tome! Somos realmente um completo mistério. Eu sei que para Susan Sontag a arte é uma questão de vida ou morte, para mim também.Interessante que o título do Filme do Diretor Pedro Almodóvar é intitulado Dor e Glória, talvez todos nós temos caminhos histórias costuradas ao longo do tempo, que permeiam o sublime e o trágico e muitos escolhem congelar a alma.

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