Savitri, filha de Aswapati, o rei Madra, era jovem e lindíssima. Muitos homens vinham à corte de seu pai para desposa-la, mas ela a nenhum desejava, por serem todos, fúteis e vaidosos, inchados de orgulho e rígidos em sua oca presunção. Savitri disse, então, a seu pai:
- Eu mesma partirei em meu carro dourado de guerra, e não retornarei antes de encontrar meu marido.
E assim visitou cidades e vilas, mas os habitantes a temiam, de modo que decidiu entrar nas florestas em busca do seu companheiro. A carruagem foi abrindo caminho pela mata com violência; os pássaros saíam voando de medo, e quanto aos animais, alguns fincavam pé a observá-la, outros escondiam-se atras das pedras, ou em tocas, ou cavavam buracos e enfiavam-se dentro da Terra, e outros, ainda, ocultavam-se nas arvores. Savitri chegou aos retiros dos brâmanes e xátrias que haviam trocado o mundo pela floresta, e certo tempo depois voltou para Aswapati e disse:
- Eu o encontrei.
- Quem? - perguntou o rei.
- Satyavan - respondeu Savitri. - Como o Tempo tirou a visão do rei Dyumatsena, tornando-o cego, um inimigo arrebatou-lhe o trono de Salwa, e ele foi viver na floresta com sua esposa e seu único filho, Satyavan.
- Fico feliz disse o rei. - Começarei os preparativos; iremos juntos até ele.
Quando Savitri o deixou, Aswapati chamou seu ministro e perguntou:
- O que sabe de Satiavan?
- Majestade - respondeu o ministro, - ele nasceu na cidade de seu pai, mas, ainda bebê, foi levado para a floresta, onde vive desde então. E leal e bondoso, belo como a Lua, e possui o vigor e a energia do Sol. É generoso, cheio de coragem e paciente como a Terra. Possui apenas um defeito, e nenhum outro: dentro de exatamente um ano Satyavan morrerá.
Aswapati contou a Savitri o que descobrira e lhe disse:
- Mude de idéia. Não se case para a infelicidade.
Savitri replicou:
- Duas vezes não escolherei. Seja sua vida curta ou longa, já tomei Satyavan por marido em meu coração.
Aswapati viu que o coração da filha não vacilara. - Será então como diz. Amanhã iremos ter com Dyumatsena na floresta.
A pé, o rei levou Savitri ao eremitério de Dyumatsena, onde se sentou sobre esteiras de capim ao lado do monarca cego, debaixo de uma árvore, e pediu-lhe que aceitasse Savitri como filha.
- Como ela irá suportar viver na floresta? - perguntou Dyumatse .
- Tanto ela como eu sabemos que a alegria e o pranto seguem seu curso onde quer que estejamos - disse Aswapati. - Saúdo-o em amizade. Não me desconsidere; não destrua minhas esperanças.
- Seja bem-vindo - disse Dyumatsena. - Abençoados sejam ambos.
Os dois reis consumaram o matrimônio de Savitri e Satyavan, e Aswapati retornou à sua cidade. Repleto de amor e graças a um casamento feliz, o ano restante da vida de Satyavan transcorreu rapidamente, e Savitri foi contando os dias, até que só restava o derradeiro. Na véspera da morte, ela passou a noite a observar o marido, até de madrugada.
Preparou-lhe uma refeição, mas ela mesma nada comeu, esperando a hora e o momento, e pensando: "Hoje é o dia".
Quando o sol estava a dois palmos de altura, Satyavan pôs o machado sobre os ombros e partiu com Savitri floresta adentro para recolherem lenha. Cheia de doçura, ela o seguiu, sorridente, observando as nuanças do seu espírito.
Logo encontraram uma árvore caída. Satyavan pôs-se a cortar os galhos, mas tinha calafrios e estava encharcado de suor. Quando parou para enxugar-se, sentiu a cabeça latejar; a luz incomodava e fazia arderem seus olhos. Largou o machado e deitou-se no colo de Savitri para descansar.
Ao fechar os olhos, sua face retorceu-se e empalideceu por um momento. Logo a cor lhe voltou e, com a cabeça sobre a coxa da esposa, ele adormeceu serenamente. Savitri correu os dedos por seus cabelos úmidos. Mas sentiu que alguém a observava, e ergueu os olhos.
Um homem alto e encorpado fitava Satyavan com olhos escuros e fixos. Sua pele era verde-escura, ele trajava vestes rubras, e tinha uma flor vermelha nos negros cabelos soltos. Estava de pé a não mais que a distancia de um arco de Satyavan, segurando um pequeno laço de fibras douradas na mão esquerda e encarando firmemente o marido de Savitri, com um olhar de grande paciência e bondade.
Savitri depositou gentilmente a cabeça de Satyavan na Terra. O deus olhou para ela, mexendo a cabeça, mas jamais seus olhos escuros, e ela disse:
- Senhor Yama, eu sou Savitri.
Yama disse com brandura:
- Os dias da vida de Satyavan estão completos, e eu vim buscá-lo.
O Senhor da Morte estendeu a mão para o peito de Satyavan, do lado esquerdo, nas proximidades do coração, e arrancou fora sua alma, um ente não maior que um polegar. Amarrou-a em seu laço. Quando a alma havia sido tomada e agrilhoada, o corpo de Satyavan não mais respirou e tornou-se frio.
Yama se retirou para a floresta, mas Savitri seguiu-o, caminhando ao seu lado. Ele parou e disse:
- Volte e prepare o funeral.
- Ouvi dizer - respondeu Savitri - que você foi o primeiro homem a morrer que encontrou o caminho da morada que não pode mais ser tomada.
- É verdade - disse Yama. - Agora volte. Não pode seguir-me além daqui. Está livre de qualquer elo com Satyavan, e de qualquer compromisso.
- Todos os que nascem devem um dia segui-lo. Permita-me apenas ir um pouco mais, como sua amiga.
Yama estancou e, voltando-se lentamente, olhou para Savitri.
- Tem razão. Você não tem medo de mim. Aceito-a como amiga, e aceite também em troca uma dádiva minha, o que eu lhe puder dar. Mas não posso devolver a vida a Satyavan.
A amizade só se consuma após sete passos dados juntos - disse Savitri. - Que a cegueira de Dyumatsena o abandone.
- Já o abandonou. Agora volte, pois está cansada.
- Não, nem um pouco - disse Savitri. - Estou com Satyavan pela última vez. Dê-me permissão para caminhar com você mais um pouco.
- Eu a dou. Eu sempre tiro, e novamente tiro. É bom poder dar. Siga-me então, se quiser, e aceite outro presente meu, exceto aquele que não lhe pude dar da outra vez.
- Que Dyumatsena recupere o seu reino - pediu Savitri.
- Ele há de recuperá-lo - disse Yama. Prosseguiram ambos rumo ao sul, e os galhos e ramos pendentes se abriam para deixá-los passar, fechando-se em seguida. Chegaram a um riacho, e o Senhor da Morte deu de beber a Savitri da sua própria mão.
- Não é difícil dar - disse Yama. - Quando a vida é finda e, tudo precisa ser entregue, dar não é difícil. Durante a vida existe dor, mas nenhuma na morte. O que é muito difícil é encontrar alguém digno de receber. Ninguém me escapa. Eu já vi a todos. - Olhou para Savitri. - E, contudo... esta água não é mais límpida que seu coração. Você busca o que almeja, você escolhe e a questão se encerra; não deseja ser nenhuma outra pessoa. Há muito que não vejo isso. Faça-me outro pedido, tudo menos a vida de Satyavan.
- Que meu pai tenha uma centena de filhos.
- Ele os terá - disse Yama. - Mas peça-me algo mais, para si mesma, tudo menos a vida de Satyavan.
Savitri respondeu
- Que eu também tenha cem filhos de meu marido.
Yama sentou-se na margem do rio, contemplando a água que fluía como uma serpente de prata.
- Sem pensar, você me respondeu. E falou a verdade. - Como há de ter filhos de Satyavan se ele está morto? Mas você não pensou nisso.
- Não.
- Sei que não. Mas eis que, não há mais vida nele; tudo está encerrado.
- Pôr isso nada pedi para mim mesma, eu que estou metade morta, e não mais anseio sequer pelo céu.
Yama suspirou. - Sou perenemente imparcial para com todos os homens, e eu, mais do que ninguém, sei o que são a verdade e a justiça. Sei que todo o passado e todo o futuro são mantidos coesos pela verdade. O perigo dela foge e se esquiva. Quanto vale sua vida sem Satyavan?
- Nada, Senhor.
- Entrega-me metade de seus dias na Terra?
- Sim, eles são seus - disse Savitri.
Novamente os olhos fixos e impassíveis de Yama pousaram em Savitri. Por fim, ele disse:
- Está feito. Tomei os seus dias e dei-os a seu marido como se fossem dele. Quer que eu lhe diga o número desses dias?
- Não. Voltaremos agora?
O Senhor da Morte ergueu seu laço, e nele nada havia.
- A alma de Satyavan descansa com você. Terá de levá-la de volta você mesma.
Yama levantou-se e prosseguiu só, para o Reino dos Mortos, com um laço que nada continha. Quando Savitri deu a volta para retornar, um raio fulminante atingiu uma arvore perto de sua casa.
Era noite quando Savitri chegou, e o cadáver de Satyavan permanecia gélido ao luar. Ela sentou-se ao seu lado, com a cabeça do marido no colo, e sentiu a pele aquecendo-se ao contato do seu próprio corpo.
Satyavan abriu os olhos para ela, como alguém retornando de longa viagem olha o seu lar quando o vê novamente. Sentou-se, então, e disse:
- Passei o dia inteiro dormindo. Tive um sonho, e nele eu ia sendo levado embora.
- Isso já passou - disse Savitri.
- Não foi um sonho?
- É tarde. Eis que ali arde uma árvore para nos guiar de volta. - Ajudou Satyavan a levantar-se e a equilibrar-se, pondo os braços do marido em torno de seus ombros, e os seus próprios braços em torno da cintura dele. - Eu levarei o machado - disse ela -, e conversaremos quando estivermos em casa.
No eremitério, Dyumatsena alimentava o fogo com lenha e contava a sua mulher histórias de reis de tempos passados. Voltou-se para Savitri e Satyavan quando chegaram, e disse:
- Há estrelas em seus cabelos para meus novos olhos, e o ouro reluz do fogo que brilha em sua pele. Hoje eu recuperei a visão.
Sentaram-se, e Savitri disse:
- Yama veio para buscar o seu filho, mas partiu sem ele. Em sua bondade devolveu-lhe a visão, e em breve o seu reino, e também dará filhos a Aswapati e a nós. Fique, e eu prepararei a ceia.
Mas Dyumatsena pôs as mãos nos ombros da nora, e não permitiu que ela se levantasse, mas trouxe-lhe ele mesmo a comida. Ao terminarem, chegou um mensageiro de Salwa, e Dyumatsena disse:
- Se não for segredo, diga-nos por que veio.
- Não há segredo a guardar - disse o homem. -Venho da parte do ministro do rei, que manda avisar: "Majestade, com uma faca eu tomei a vida do rei ilegítimo, e os amigos dele abandonaram a cidade e não ousam olhar para mim. Guardo-lhe o reino com estas mesmas mãos. Aja agora como julgar melhor".
- Esta é minha história, princesa - encerrou Vyasa.
- Savitri transformou a desgraça em alegria.
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