Dança-teatro: estímulos transdisciplinares para o intérprete-compositor


Dança-teatro: estímulos transdisciplinares para o intérprete-compositor


Compartilho o texto porque apesar da dança clássica indiana desconhecer o dilema teatro- dança , sendo linguagens simbióticas em uma única manifestação, no ocidente apesar das pesquisas de importantes encenadores e grupos de pesquisa , ainda vai levar um tempo para que artistas como eu que pesquisam uma linguagem" entre" o teatro e a dança e o diálogo de linguagens tenham espaço para difusão e intercâmbio de técnicas .


RODRIGUES, Leticia Maria Olivares1



Dança-teatro: estímulos transdisciplinares para o intérprete-compositor
RODRIGUES, Leticia Maria Olivares1
RESUMO
A partir de uma reflexão analítica sobre a revisão de literatura, o trabalho realiza
um levantamento dos elementos que podem categorizar a dança-teatro como linguagem
e (inter) disciplina. Procurando uma metodologia, a inter e a transdisciplinaridade
servem de base para a conjunção das artes e sustentam a seleção de técnicas usadas por
ambas, visando mapear o caminho das fases de aquisição da linguagem para um artista
híbrido, chamado de intérprete-compositor. As questões ligadas à corporeidade se
impõem e a dissertação encaminha-se para a análise da apropriação corporal,
transferindo a transdisciplinaridade para o sujeito executor do resultado da linguagem.
Tendo como base a fenomenologia de Merleau-Ponty e as intersecções das técnicas
corporais orientais e ocidentais, chega-se a um “método” que propõe quatro fases. Esta
“moldura”, porém, não visa restringir, mas antes, praticar a própria dialética do discurso
transdisciplinar e estabelecer conexões rizomáticas na troca de informações entre as
matérias, considerando a polifonia contemporânea que ecoa nos resultados espetaculares
da dança-teatro.
Palavras-chave: dança-teatro; corporeidade; linguagem e disciplina.
Como definir a dança-teatro? Não se trata de dualizar ou opor dança X teatro,
mas sim de pesquisar o “entre” essas duas linguagens que caracterizam uma terceira. E
nesse “inter”, o hífen, usado para separar as palavras, comporta ainda, as questões
relacionadas ao intérprete implicadas em composição, corpo cênico, performance,
trabalho sobre paradoxos, enfim, todo o processo de apropriação da linguagem e seus
resultados, apontando para um cenário que se dá no âmbito do “multi”, do “trans” e dos
estados criativos
No levantamento, feito por Sônia Machado Azevedo, no livro O papel do corpo
no corpo do ator (2008), pode-se identificar o panorama das técnicas corporais do
1 Pesquisadora autônoma, Graduação em Letras (Mackenzie), Atriz (DRT 13018), Especialista em Dança
e Consciência Corporal (FMU).
século XX usadas por atores, bailarinos e seus orientadores, e as influências recíprocas
de artistas que buscaram, através do entendimento do corpo cênico, os recursos para os
métodos que desenvolveram, tanto em uma como em outra arte bem como em
abordagens corporais somáticas também compartilhadas na busca expressiva do corpo
do intérprete.
Mas foi Laban quem cunhou a terminologia DANÇA-TEATRO nos anos vinte.
Esta por sua vez, foi ampliada por seus discípulos, Mary Wigman e Kurt Joss, e tem em
Pina Bausch a referência contemporânea de sua execução.
Laban promovia improvisações em que seus alunos dançavam sem música,
recitavam poemas, recorrendo a movimentos cotidianos ou abstratos. Chamava a isso de
Tanz-Ton-Wort (Dança-Tom-Palavra) (Fernandes, 2007, p.20), no qual a importância
da “atitude interna” influencia diretamente a qualidade do movimento (idem, p.34)
Desenvolveu o seu sistema de movimento, fundindo o rigor científico da
observação e notação de movimentos com a necessidade expressiva das ações. A
herança de Laban, chamada Análise Laban de Movimento é na atualidade uma das mais
influentes tanto na dança quanto no teatro, bem como nas terapias corporais, tendo
vários centros de estudos que desenvolvem seus conceitos . Segundo Fernandes (2002):
“Conceitos e práticas esboçadas por Laban há um século, como o Anel de
Moebius ou os conceitos de fluxos de energia e intensidades, são extremamente
contemporâneos, e vêm sendo crescentemente usados por autores como Jacques
Lacan, Bonnie Bainbridge Cohen (Centramento Corpo-Mente), Sylvie Fortin
(Educação Somática), Ivaldo Bertazzo (a partir da técnica de S. Piret e M. M.
Béziers), Elizabeth Grosz (Feminismo Corpóreo), Deleuze e Guattari.2.
Mary Wigman, discípula de Laban, refutou o movimento “belo”, procurando a
verdade do corpo cênico típico dos atores no processo de criação. E para Kurt Joss,
também discípulo de Laban, a dança era na essência teatro. Em seu espetáculo “A Mesa
Verde” , na década de 20, fez uso de máscaras como sátira aos poderosos, em uma
coreografia claramente influenciada pelo expressionismo alemão e totalmente
teatralizada3.
2 Ciane FERNANDES, Entre Oriente e Ocidente: Canções de Arco-íris sobre os Céus da
Dança-Teatro, Resenha do espetáculo Rainbow Melodies da Rajyashree Ramesh Academy for
Performing Arts, no Staatliche Museen-Dahlem, Berlin, 10 de Novembro de 2001.
3 Anotações feitas na aula de História da Dança, Pós Graduação em Dança e Consciência Corporal, FMU,
2008.
Pina Bausch foi aluna de Joss e também teve experiência com a dança norteamericana,
estudando em NY nos anos 60. Ao voltar para a Alemanha, fundou a
Wuppertal TanzTheater (Fernandes, 2007, p. 22), ou Wuppertal DançaTeatro,
assimilando no nome da Companhia a nomenclatura que funde as duas linguagens.
Chegamos com Bausch à contemporaneidade e ao que mais se identifica como obra de
fusão entre a dança e o teatro. O trabalho dessa coreógrafa foge da estética
convencional, seja pela linguagem seja pela formação do corpo de baile, cujos membros
são selecionados segundo suas qualidades como atores e bailarinos e nunca pelo tipo
físico específico de dançarinos. (AZEVEDO, 2008, p. 85).
A artista utiliza estímulos para os intérpretes que vão de perguntas simples,
como: o que você comeu hoje, evocações de memórias da infância, a questões
existenciais complexas, como: o que é e o que poderia ser? Ou: fale do medo4, para
provocar respostas gestuais ou textuais totalmente personalizadas, segundo a
experiência e vivência interna de cada bailarino, gerando leitmotifs que justapostos,
resultarão no espetáculo.5 O material colhido das improvisações é obsessivamente
repetido, gerando seqüências que são organizadas através de procedimentos de recortes
e colagem, e gerando uma interpretação baseada na transitoriedade do significado
atribuído aos gestos. A fragmentação do discurso cênico é linguagem e recurso
recorrente em Bausch, provocando cenas inusitadas, surpresas no encadeamento
significativo das ações. (AZEVEDO, 2008, p. 85 e FERNANDES, 2007, p. 28).
Trabalhando sobre paradoxos, os resultados estéticos de Bausch inspiram à
liberdade criativa, porém, assumem a formalidade de linguagem pelo rigor da aplicação
e causam resultados ventilados de novidades implicando a platéia na ressignifição do
que é apresentado, criando, por sua vez, um intenso e pessoal diálogo entre obra e
espectador. Segundo Fernandes (2002) 6
“A dança-teatro contemporânea alemã fragmenta a linguagem de ambos, dança
e teatro, incluindo diferentes possibilidades de movimentos - funcional, técnico,
cotidiano, teatral, ilustrativo, etc. - interagindo com diferentes formas de arte.
4 R.HOGHE e U.WEISS, Bandoneon, em que o tango pode ser bom para tudo , 1989, p.27.
5 Na apresentação do livro acima, Carlos MARTINS e Marcelo EVELIN usam esse termo, proveniente da
literatura, para exemplificar os “motes” criados por Bausch.
6 Técnica e Tradição: o Sistema Laban/Bartenieff no Aprendizado da Dança Clássica Indiana,
Painel "Artes Cênicas", Palestra proferida no Encontro Laban 2002.
Hoje, coreógrafos de várias partes do mundo usam o termo para descrever
performances que estão além das apresentações de dança e teatro
convencionais, usando uma mídia diferente para quebrar as expectativas e abrir
a percepção do público.”
Mas as fronteiras7 entre dança e teatro sempre estiveram embaçadas. Ainda antes
das referências citadas, se considerarmos os primórdios da civilização. Segundo Mendes
(1985), a dança é uma das mais antigas formas de arte. Antes de falar o homem
gesticulou. Com a dança, sons eram produzidos, seja pela voz dos participantes como
pelo ritmo dos pés nas cadências corporais. A dança mais a voz sugerem o ritmo e, a
partir do domínio da linguagem, a poesia. Nisso implica o surgimento da música e do
teatro inaugurando, desde lá, uma concepção interdisciplinar entre os procedimentos8,
que vão se refletir como fenômenos sócio-culturais em várias épocas.
O rigor estruturalista, porém, estabeleceu disciplinas que, como molduras,
deixaram estanques os conceitos pendurados a cada arte. O Paradigma mecanicista do
século XVII influenciou todas as áreas no sentido da especialização9, criando a
necessidade de conceituações normativas do mundo moderno.
A arte da dança configurou-se como uma manifestação cênica, que ocorria em
um espaço determinado e que exercia funções estéticas e poéticas, traduzidas por corpos
em movimento atuantes em composições coreográficas supondo um público para serem
apresentadas.10 E o teatro, por definição, compartilha da idéia de espaço cênico11 e da
necessidade de público, mas, desde a civilização grega, vem se conceituando a partir
dos dramaturgos, justamente por dar voz à tragédia e à comédia da estadia humana na
7 Cabe ressaltar, que nas artes orientais essas fronteiras não existiam, fazendo parte de artes como o
Kabuki (Japão) e o Katakali (Índia), a formação rígida do artista que contempla, desde pequeno, o
domínio do corpo e da voz em todas suas aplicações, Robert PIGNARRE, História do Teatro, Portugal,
3ªed., p. 48, 51, s/d.
8Ana Guiomar Rego SOUZA, Interdisciplinaridade e transdisciplinaridade no conhecimento musical,
Anais do ll Seminário de Pesquisa em Música da UFG, 2002.
9 Idem
10 Anotação da aula de História da Dança, profª Valéria Cani BRAVI, Pós- Graduação em Dança e
Consciência Corporal, (FMU-SP) mai/2007.
11 Palavra de origem grega: theatron, que significa “lugar de onde se vê”.
Terra. Passando pelos dramas litúrgicos, farsas populares e companhias itinerantes, o
uso do texto sempre diferenciou o teatro da dança.12
A dança também dava lugar a mais abstrações significativas do que a concretude
da palavra no teatro permitia. No entanto, as manifestações artísticas são mais flexíveis
do que suas terminologias e vivem se contaminando, promovendo inter-relações e
integrando no próprio fazer, revoluções nos conceitos.
Como visto, a partir do sec. XX, as apropriações entre as artes promoveram
novas terminologias. Dança-teatro, performances são realizadas, confundindo as
disciplinas ao se falar enquanto dança ou dançar enquanto se fala.
Nas ciências, a Teoria da Relatividade de Einstein e a Física Quântica apontaram
para um universo mais complexo que o contido na concepção newtoniana, relativizando
os conceitos estanques como a indivisibilidade atômica e a neutralidade da
observação13, questionando seu próprio postulado em busca de novas respostas ao
mundo moderno. (SOUZA, 2002, p. 6). É nessa época também que se dá uma mudança
do pensamento, na qual o “todo” não é mais constituído de suas partes apenas, mas das
relações entre elas, levando-se em conta a subjetividade do ponto de vista, ou seja, o que
aquele observador está colocando como foco naquele momento.14
A necessidade da interdisciplinaridade surge como forma de correlacionar a
imensa quantidade de disciplinas que se formaram no decorrer de tantas descobertas ao
longo do século XX.
Na contemporaneidade, essa polifonia de tendências e manifestações que não se
enquadram muito bem em nada, mas se apropriam de tudo, ecoa nas disciplinas.
As questões corporais ganharam destaque em seus enfoques históricos,
filosóficos e fisiológicos. A partir da década de 80, os estudos culturais relacionam
tendências ligadas desde a semiologia, psicologia até as novas tecnologias, como a
inteligência artificial, exigindo um diálogo entre as várias matérias. (GREINER, 2005,
p.9). No entanto, como diz Deleuze: “Não há território sem um vetor de saída [...] e não há
12 Robert PIGNARRE, História do Teatro, Portugal, 3ªed., p. 35, s/d.
13 Segundo o Princípio da Indeterminação, o observador influencia o fenômeno observado.
14 Segundo Merleau-Ponty: “Buscar a essência do mundo não é buscar aquilo que ele é em idéia, uma vez
que o tenhamos reduzido a tema de discurso, é buscar aquilo que de fato ele é para nós antes de qualquer
tematização”. MERLEAU-PONTY, A Fenomenologia da Percepção, 2006, p. 13.
saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se
reterritorializar em outra parte”.15
A terminologia dança-teatro implica na reterritorialização de duas modalidades
de expressão artística. Mas onde?
Segundo o Dicionário Laban, de Lenira Rengel (2001, p.47) 16, o verbete
Dança-Teatro encontra-se assim definido;
“Dança-teatro ou dança de palco, termos usados por Laban com o mesmo
significado. em alemão, tanzbühne. A fusão do movimento, música e a palavra
falada; uma forma de dança usada por Laban como tentativa de “intensificação
formal da expressividade humana na performance artística” (Mary Wigman,
1921, apud Preston, 1995). O nome da companhia de Laban era Tanzbühne
Laban. Os experimentos iniciais de Laban, buscando representações desta
“intensificação” em múltiplos contextos, como ópera, vaudeville, musical e
teatro muito influenciaram o Tanztheater de Pina Baush, a qual foi aluna de
Kurt Joss, que por sua vez foi aluno e colaborador de Rudolf Laban (a partir de
SANCHEZ-COLBERG, apud PRESTON-DUNLOP,1995,1998)” (sic)
Laban preocupava-se com a definição dessa pesquisa da linguagem da dançateatro
por ser diferente tanto da expressão puramente espontânea quanto da linguagem
oral, usando o termo para caracterizar espetáculos que incorporavam movimentos e
narrativas, sendo abstratos ou com referências cotidianas e até cômicas. Diz:
“Quando eu me encarreguei de ser um dos primeiros entre os dançarinos de hoje
a falar de um mundo para cuja linguagem faltam palavras, eu estava totalmente
consciente das dificuldades deste cargo. Apenas uma firme convicção de que
temos que conquistar para a dança o campo da expressão escrita e falada, abri-lo
(...) para círculos mais amplos, trouxe-me a abraçar esta difícil tarefa.” 17
Na liberdade que concede esta linguagem, está também a dificuldade de sua
definição, uma vez que não se pretende apenas justapor o que é de uma linguagem em
outra, mas antes, introduzir um novo conceito, o da transversalidade, que implica em
verticalizar os temas que se inserem entre as matérias.
15 Apud. Rogério HAESBAERT e Glauco BRUCE, Desterritorialização na obra de Deleuze e Guattari,
Universidade Federal Fluminense, s/d.
16 Lenira Peral RENGEL, Dicionário Laban, Tese de Mestrado, UNICAMP- Instituto de Artes,
Campinas
17 Rudolf LABAN, traduzido de Die Welt des Tänzers por Vera MALETIC, in Body-Space-Expression:
The Development of Rudolf Laban’s Movement and Dance Concepts, Berlin, Moutoun de Gruyter, 1987,
p. 51, apud Ciane FERNADES, Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro, repetição e transformação,
2007, p. 35.
Chega-se então ao conceito de interdisciplinaridade. Segundo Nicolescu, em O
Manifesto da Transdisciplinaridade18, a interdisciplinaridade diz respeito “à
transferência de métodos de uma disciplina para outra” e pode acontecer em três graus.
O “grau de geração de novas disciplinas”, no qual a transferência dos métodos de uma
para outra gera uma nova matéria, é o que diz respeito ao caso da Dança-teatro, que já
faz parte de muitos cursos de graduação19, tanto de Dança quanto de Teatro, contando,
inclusive com um pioneiro curso de Graduação em Dança-Teatro inaugurado em 2009
na Universidade de Pelotas (UFPEL-RS). Torna-se patente também, o fato que o termo
dança-teatro é cada vez mais usado como legenda em trabalhos nacionais.
Na atualidade, o discurso inter e transdisciplinar norteia pesquisas, aparece em
enunciados (como o deste trabalho) e é apontado como a solução para o desgastado
modelo da educação formal em geral.
Mas até aqui, cuidadosamente, não foi fornecida nenhuma definição do que seja
a transdisciplinaridade, apenas apontando-a como instrumento. Isso porque a
transdisciplinaridade pode ser um terreno pantanoso, apesar de não ser um enunciado
novo,20 no qual aventurar-se exige coragem e abertura para os ajustes que incorrerão no
percurso. A própria linguagem aprisiona, ao definir algo que ainda não é totalmente
nomeado, por, justamente, não pretender ser apenas um enunciado, mas implicar em
ação, assim como a dança-teatro.
Na realidade, não há um consenso sobre uma epistemologia fechada para tal
proposição, uma vez que ela mesma, por tentativa de definição coloca-se no “trans”, no
além dos conceitos, pretendendo abarcar uma variedade e pluralidade dos mesmos. Ao
situar-se além das fronteiras, a transdisciplinaridade pretende dar conta de fenômenos
que se encontram fora do âmbito das disciplinas. Diz Nicolescu, um dos autores da
Carta da Transdisciplinaridade: “a Transdisciplinaridade não é uma nova disciplina”, e
18 Basarab, NICOLESCU, O Manifesto da Transdisciplinaridade. Coleção Trans. 2001. 120p
19 Podemos citar como exemplo: Comunicação das Artes do Corpo (PUC- SP), Bacharelado em Dança
(UFRJ, UFBA), entre outras.
20 Tanto na história epistemológica e principalmente no âmbito artístico, esse procedimento, assim como
o da interdisciplinaridade, já vem sendo aplicado desde a Grécia Antiga, na qual a Mousike, por exemplo,
reunia didaticamente em uma única manifestação, a Poesia, a Música e a Dança. (Apesar de ser
Aristóteles quem delimita os elementos da tragédia, separando então, o Teatro de outras manifestações
artísticas) (Souza, 2002, p.1)
“não diz respeito nem ao método (nem, portanto, à transferência do método), nem à
justaposição de conhecimentos que fazem parte de uma disciplina já existente.” É antes
“uma atitude rigorosa em relação a tudo o que se encontra no espaço que não pertence a
nenhuma disciplina” 21 e ao se falar de atitude, fala-se do sujeito em face dessa
proposição.
Serão abordados aqui os artigos da carta que estabelecem as relações com a
Dança-teatro. O Artigo 3, dá conta de como relacionar-se com a interdisciplinaridade ao
dizer: “A Transdisciplinaridade é complementar da aproximação disciplinar; ela faz
emergir da confrontação das disciplinas novos dados que as articulam entre si e que nos
dão uma nova visão da natureza e da realidade”. Fica claro que apenas pela nominação
Dança-teatro constitui-se a atitude de Interdisciplinaridade, que segundo Nicolescu
(1994, apud Santos, p.2). “Diz respeito sempre ao objeto de estudo de disciplinas do
ponto de vista do método. […] Quando se faz a transferência de método de uma
disciplina para a outra, fica-se no espaço da interdisciplina.”
Porém, o Artigo 4 diz : “O elemento essencial da Transdisciplinaridade reside na
unificação semântica e operativa das acepções através e para além das disciplinas”. Isso
coloca a dança-teatro relacionada à transdisciplinaridade justamente por se tratar de uma
zona de pesquisa, em que as fronteiras estão embaçadas e a hibridação resulta em uma
terceira coisa que não é uma nem outra, abarca muitas possibilidades como o uso de
novas tecnologias e as dramaturgias corporais, considerando também as histórias
pessoais e formações dos intérpretes, em consonância com o Artigo 5, que versa:
“ultrapassa(r) o domínio das ciências exatas pelo seu diálogo e a sua reconciliação não
somente com as ciências humanas, mas também com a arte, a literatura, a poesia e a
experiência interior”. (grifo nosso). A abordagem metodológica da dança-teatro, bem
como a transdisciplinarização do sujeito ficam ressaltadas no Artigo 11, o qual:
“revaloriza o papel da intuição, do imaginário, da sensibilidade e do corpo na
transmissão dos conhecimentos.” (idem), princípio intrínseco, aliás, a todas as artes.
Fernades (2006,p.374,375), coloca:
“... a dança-teatro não me parecia merecer uma definição fechada, ou mesmo
uma descrição classificatória. Percebê-la através de alguns princípios gerais e
21 Basarab NICOLESCU A Visão do que há Entre e Além, entrevista a Antónia de Sousa in Diário de
Notícias,Caderno Cultura, Lisboa, de Fevereiro de 1994, pp. 2-3, apud Renato P. santos,1995, p. 2,
Revista Cadernos de Educação, n°8, in Fórum Educação.
dinâmicos seria mais justo. Inclusive por que seu eixo constantemente sai do
eixo, isto é, a dança-teatro desconstrói construções, definições, modos fixos de
agir, ser pensar...”
É importante salientar que a Transdisplinaridade descentraliza as questões sem
eleger um grau de importância maior para um tema em detrimento de outro, mantendo a
margem como caminho de configurações rizomáticas no estabelecimento de relações
possíveis entre os assuntos.
As relações rizomáticas são propostas por Deleuze e Guattari (apud
Fernandes,1997) e emprestam a configuração específica de um tipo de raiz como a do
gengibre ou do bambu, para exemplificar uma figuração de conexões transitórias e
instáveis, sem destino certo entre uma e outra conexão, produzindo vários caminhos
possíveis de serem tomados. Deleuze22 fala em seu texto “Platão e o Simulacro”, a
respeito de uma obra não-hierarquizada, um “condensado de coexistências, um
simultâneo de acontecimentos”, que ilustra bem essa rede aplicada às artes
contemporâneas
O espetáculo de dança-teatro vem se caracterizando como resultado da interface
entre os elementos dessas duas artes, considerando-se uma estética que une a elaboração
coreográfica permeada de texto e muitas vezes utilizando-se de recursos tecnológicos.
Márcia Strazzacappa exemplifica23:
“... a tendência generalizada à interculturalidade e à plurilinguagem, como
resultantes (ou agentes) desta evolução onde recursos de diversas artes são
colocados à disposição da obra cênica. Assim, já não se define mais até onde vai
o teatro e a partir de quando começa a coreografia; em que momento o
bailarino toma o papel do músico; o instrumentista vira ator; e assim por diante.
Não se fala mais em espetáculo teatral, musical ou coreográfico, mas em
espetáculo cênico, ou simplesmente espetáculo.”
Mas quem faz este espetáculo? Quem é esse artista híbrido? Será o híbrido da
dança-teatro um novo ser, sem a rigidez estética da dança e sem o compromisso da
coerência teatral?24 Coloca-se, então, a questão do protagonista, aquele em cena já faz
22 Gilles DELEUZE. In: Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 2003 p. 259-271, apud, Michelle
NICIÉ, A verdade é vertiginosa, 2006
23 Técnicas Corpóreas à procura do outro que somos nós-mesmos, ou “à la recherche de nousmêmes
ailleurs” , in Revista do Lume, n.1, 1998.
24 Lembrando que a hibridação na biologia gera seres diferentes de suas matrizes, geralmente de espécies
diferentes, gerando o estranho, muitas vezes no campo da perda e não da acumulação de característica.
parte de uma nova corrente de pensamento que busca a apropriação de si e de suas
manifestações, implicadas na corporeidade habitada (Merleau-Ponty, 2006, p.108), em
oposição à separação cartesiana: mente versus corpo sob a qual mente é constituída de
uma substância diferente do corpo, feito de matéria. Para Ponty: “A união entre a alma e
o corpo não é selada por um decreto arbitrário entre dois termos exteriores, um objeto e
outro sujeito. Ela se realiza a cada instante no movimento da existência”. (idem, p.131).
Os “acontecimentos corporais” aprofundam caminhos da busca da “verdade
cênica”, apontando para o corpo “extra-cotidiano” (Barba, 1995, p.34) que é veículo de
imagens, e mais, a autoria das mesmas, uma vez que passam por corpos diferentes, com
diferentes referências (Ponty, 2006, p.108). A visão fenomenológica da apropriação
corporal propõe o corpo presente no aqui-agora como uma consciência de potência, ou
seja, “a consciência é não um ‘eu penso que’, mas um ‘eu posso”.25
Há um sentido ontológico e antropológico no fazer da dança-teatro. Ser
intérprete dos seus possíveis ao colocar-se corporalmente em um estado de
expressividade para a integração de uma estética, traçando novas trajetórias
significativas26. E avança ainda mais, passando pela subjetividade das experimentações
pessoais nas quais o corpo deixa de ser “um corpo” para se tornar o próprio sujeito em
si, incitado a “achar uma relação corporal com a totalidade da existência”27. A
transdisciplinaridade é então, aplicada ao sujeito, detentor de sua história de vida e
variadas formações disciplinares conjugadas nesse modo de expressão artística.
Extrapolam-se os atores, os bailarinos e seus híbridos (ator-bailarino, bailarinoator,
ator-criador), e se chama de intérprete-compositor ao fazedor da dança-teatro, no
sentido de ser, juntamente com o diretor ou coreógrafo, o autor e executor do resultado
espetacular, com os estímulos filtrados pelas suas experiências e recompostos em
resultados cênicos.
Uma vez que não adianta colocar o bailarino para falar e o ator para dançar para
que se configure uma nova linguagem nem um novo discurso estético, quais são as
necessidades desse intérprete-compositor para realizar a dança teatro? É um intérprete
que precisa de um corpo treinado tanto para o gesto expressivo como para o discurso?
25 M. PONTY, A Fenomenologia da percepção, 2006, p. 192.
26 Bourriaud, 2002, apud Anais do IV Congresso de Pesquisae Pós-Graduação em Artes Cênicas UNIRIO
– Rio de Janeiro, 2006
27 Ullmann apud Laban, 1990, p.107
Acredito que sim, pois um corpo que se fragmenta em possibilidades por justamente
conhecer profundamente a capacidade de articular-se e se desarticular, enche-se de
potência expressiva, alcançando estados que se diferenciam do corpo cotidiano. O
âmbito de alcance da aplicabilidade da pesquisa depende muito mais do ponto de
partida em que o QUEM está, do propriamente quem o seja. Os resultados são efetivos
no encadeamento de informação ao ferramentar o intérprete, abrindo um leque de
descobertas e aplicabilidade, ao conduzir o QUEM numa jornada de apropriação de si e
de suas capacidades expressivas.
A identificação de parâmetros ao invés de restringir, amplia a pesquisa, pelo seu
caráter transdisciplinar, já que este, por definição, trata da “inclusão das partes no todo e
do todo nas partes” (SOUZA, 1995). O levantamento histórico conduz à visão de
aproximação e distanciamento das categorias, assim como à apropriação expressiva do
que serve ao produto espetacular.
Mas esta só é verdadeira ao ser aplicada em cada corpo, com tantas referências
quanto as expostas aqui, pois a experiência é que embasa os conceitos, e não o
contrário. (GREINER, 2005, p.123) E se extrapola a moldura metodológica, ao
estabelecer as ferramentas decodificadas, que ampliam tanto as manifestações
corporais28 quanto a aplicação ao espetáculo ou ao artista, pois resultam em
PROCESSOS implicados em corpos que passam por eles.
As fases para esses processos foram denominadas por mim como:
APROPRIAÇÃO CORPORAL (AC), referente ao trabalho de Consciência Corporal,
APROPRIAÇÃO TÉCNICA (AT), por meio de exercícios específicos de dança e teatro,
APROPRIAÇÃO DE LINGUAGEM (AL), fase em que as conexões entre as artes
tornam-se um meio para o intérprete-compositor, e APLICAÇÃO EXPRESSIVA
(APEX), quando o pesquisador direciona suas aquisições da linguagem para O COMO a
quer aplicar, considerando COMO se é de cada um, pois o “método” anseia por um
trabalho físico que não se prende à forma, apesar de utilizar-se dela, mas também pelo
estar em relação, utilizar-se dos conteúdos internos, ser afetado e chegar à efetiva
comunicação.
Temos, então, um plano diretivo do que seria a matéria dança-teatro como
disciplina, ou melhor: in-disciplina, usando uma provocação de Helena Katz (2004,
28 Os caminhos de percepção corporal cinestésica, segundo Merleau-Ponty in Fenomenologia da
Percepção, São Paulo: Martins Fontes, 2006.
apud Greiner, 2005, p.126), e apoiada em Certeau (1986) 29 uma vez que o corpo
disciplinado por técnicas precisa se libertar dos rigores para vivenciar efetivamente as
possibilidades de criação, estabelecida, porém, com elementos concretos e vivências
estético-corporais.
A dança-teatro está mais para um constante TORNAR-SE do que SER. A
configuração do rizoma, estabelecida na ontologia de Deleuze e Guattari (1997, apud
FERNANDES, 2006, p.34), caracterizando as inter-relações sem hierarquias e direções
pré-estabelecidas, é uma boa figura para o percurso desta pesquisa, assim como o Anel
de Moebius30, que não tem começo nem fim, e traça percursos de dentro para fora e de
fora para dentro num fluxo contínuo de recriação mútua. (idem)
Assim é também com o intérprete, que vai compondo entre suas conexões,
baseado em escolhas, a partitura expressiva de seus conteúdos apreendidos numa
dialética inserida no momento presente, do aqui-agora, pois ele não é, senão naquele
momento em que se comunica, dependendo de todas as variáveis que o afetam e
produzem diferentes estados corporais.
Referências Bibliograficas
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