O CONTO DE AIA - THE HANDMAID´S TALE

Sempre que escrevo é para fazer relatos da história que vivi no meu corpo e a sabedoria adquirida através da experiência, como me impactou e se transformo em elemento para dançar ou se vira sabedoria escrita para a minha alma. O que vou relatar aqui me deixou muito chocada e demorei muito para processar. Fui passar uns dias na casa de uma tia e estávamos jantando, de repente entra na sala uma mulher completamente desfigurada com sinais brutais de violência,pernas inchadas e roxas,ela mancava e gemia. Foi quando fiquei sabendo que ela sofre violência doméstica quase todos os dias com o olhar conivente de toda a vizinhança, e estou falando de uma mulher instruída e com boa situação financeira. Na hora fiquei com muita raiva daquela situação que parecia natural e corriqueira para todos. Perdi a fome e fiquei pensando, se tinha caído em alguma cena da série o conto de Aia, criada por Bruce Miller, que é baseada num romance escrito em 1985 da escritora canadense Margarete Atwood. Baseada nesta distopia, em um futuro próximo um Estado totalitário Cristão toma o poder no território dos Estados Unidos e como todo regime militarista e fanático, dividido em castas, e todos os direitos das mulheres são destruídos, e perde-se o direito à cultura, ao trabalho e principalmente em relação ao seu corpo,as mulheres são brutalmente subjugadas e, por lei, não têm permissão para trabalhar, possuir propriedades, controlar dinheiro ou até mesmo ler. A infertilidade mundial resultou no recrutamento das poucas mulheres fecundas remanescentes em Gileade, chamadas de "aias" (Handmaid), de acordo com uma interpretação extremista dos contos bíblicos. Elas são designadas para as casas da elite governante, onde devem se submeter a estupros ritualizados com seus mestres masculinos para engravidar e ter filhos para aqueles homens e suas respectivas esposas. A história é narrada pela experiência de uma Aia, uma mulher Americana, casada com uma filha que é capturada digamos assim, separada da família e passa por uma treinamento até virar Aia. Fiquei tão deprimida nos primeiros episódios que quase não tive estômago para continuar, mas a cada episódio, alguma coisa dentro de mim se fortalecia de acordo com a capacidade de resistência de June Osborne, sua luta por não se deixar engolir e não perder sua identidade e força. Na primeira temporada o que mais elevou minha fé, apesar de estar falando de crueldade sufocante, foi quando ela ganha de presente uma caixinha de músicas, aquela que tem uma garota presa dentro de uma caixa, e de alguma forma ela começa a pensar que ela não era aquela garota dentro da caixa que só dança quando alguém abre a caixa, quando alguém dá corda, achei isso de uma grande alavanca para a transformação, não é possível mudar sem sair da caixa, sem romper com os modelos impostos, é preciso lutar. Voltando à falar da mulher, perguntei se ela queria ir na delegacia denunciar o marido, e a minha tia disse que ela implora para ninguém fazer isso, não fiquei satisfeita e perguntei se ela queria ajuda,e ela me disse que vai ficar com o marido, que o ama, e que ele vai mudar. Fiquei sem palavras diante de tantos clichês e simplesmente não consegui continuar lá, fiquei muito perturbada e impotente, queria denunciar e ao mesmo tempo ela estava confortável em se deixar mutilar.Realmente não estamos muito longe deste futuro distópico narrado no livro e na série, isto me deixou mais triste, e se olharmos para o planeta tem muito lugar assim. Mas existe uma coisa muito tocante que esta série me trouxe, que foi a sensação de não estar sozinha, que nossa inteligência é subversiva e sempre que estivermos lutando pela nossa identidade, e pela força de sabermos que nossas histórias e relatos será passados para outras mulheres que viram e achei lindo quando escutei a aquela mulher machucada na história falar que vai continuar escrevendo sua própria história mesmo que não tenha ninguém para ouvir. Eu nunca cheguei tão perto de ver o que uma sociedade machista pode fazer, e eu vi uma mulher com o corpo mutilado e a alma partida em pedaços, implorar para permanecer naquela situação degradante. Não sei, ainda fiz uma última coisa antes de sair da cidade, fui numa assistente social e relatei os fatos, quem sabe ela consegue com apoio de outros profissionais ajudar esta mulher-irmã a buscar outro lugar no mundo. Eu que sempre falei do corpo como matéria-prima de libertação, percebi que é também um lugar para o poder exercitar sua opressão. Eu não sou mais a garota da caixa e nem sei se fui um dia, me enquadrar sempre foi complicado.

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