A ARTE DE DAR

Sou uma dançarina-atriz que tem como princípio de pesquisa o processo, valorizo o caminho, as descobertas e os encontros que a dança me proporciona. Dancei recentemente numa universidade para um grupo da chamada terceira idade, ou pessoas com mais de 50 anos. Eu senti naquelas pessoas uma manifestação muito rica, uma necessidade de beleza e uma vibração elevada. Percebi neste momento a arte de dar.É quando você olha para alguém e você tem a chance de devolver a humanidade de alguém ou resgatá-la da invisibilidade, que muitas vezes nem é percebida. Eu sei o que é sentir esse afago da vida quando me sinto invisível. O filme Barton Fink dos irmãos Coen, é uma descrição muito rica do que é a vida de um artista sensível e criador que realmente quer doar algo de belo para o mundo.Tem uma cena linda, quando ele finalmente depois de ter sofrido um bloqueio criativo, ele era roteirista de Hollywwod, com sua solidão e felicidade única, sai para comemorar sua vitória solitária por ter conseguido finalizar o roteiro do filme e ninguém dá valor. Num mundo uniformizado ele grita e aponta as mãos para a cabeça dizendo onde estava a sua farda: "Minha farda está na cabeça" e quando vai apresentar o roteiro para o magnata da indústria do cinema é execrado, porque só tinha sentimentos. Na minha opinião é esta solidão misteriosa que caracteriza um criador. Mas o que escrevo aqui é sobre outro tipo de dor, a dor da invisibilidade. Fiquei sabendo através de uma pesquisa sobre invisibilidade, sobre como machuca não ser visto, notado, muito comum nas pessoas que estão em situação de rua, ou trabalham na rua, mas pode ser encontrada em qualquer lugar, e em qualquer pessoa, é uma indiferença que machuca, um mundo onde ninguém sorri ou olha nos olhos, esta dor tão humana que é a falta do reconhecimento da presença do outro. Talvez por dançar com os meus olhos, eu ofereço esta presença, não estou no palco me exibindo. O que faço é uma troca silenciosa, uma troca justa e honesta. No final da apresentação vi aqueles olhos silenciosos e agradecidos, e eu realmente recebi muito mais. Um senhora me perguntou como eu consegui ser tão leve em cena e me disse que eu tinha salvado o seu dia, que estava muito difícil. Interessante foi uma senhora que me filmou e ficou me pedindo para postar o vídeo que fez da minha apresentação no you tube e diante de minha negativa ficou perplexa porque eu não queria, como se fosse impossível alguém se expor tanto e ao mesmo tempo ser muito reservada. Eu sou realmente estranha. Esta senhora é costureira, eu a convidei para ser minha aluna gratuitamente e ela aceitou prontamente e já se imagina nos palcos, eu vi tanta sinceridade e felicidade nela! E para mim foi tão pouco, e ela ainda me deu outro presente, ela escreve poesias lindas, tem a poesia dentro de si mesma, costura como ofício na vida e se costura pelas palavras. Por isso é importante ter um caminho interno, para não se deixar afundar, porque o medo de se expor e parecer vulnerável e da sensação de fracasso é muito maior do que exercitar a nossa presença diante de outra presença,e assim vamos escolhendo permanecer anestesiados por entretenimento fácil, televisão, redes sociais, emoções baratas que inibem nossa capacidade de sentir amor e compaixão e de realmente ficarmos com a alma nua diante da beleza de ser humano. Acho que é isso que busco com minha dança, entrar em conexão profunda com qualquer desconhecido, através da suavidade dos meus olhos e mãos, esta eterna busca pelo humano,ser mais humilde, como na raiz da palavra humanidade humus, terra.Dar e receber nos deixa próximos da terra e de nós mesmos.

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