E O SILÊNCIO SE FEZ VOZ

Na vida quando começamos a tomar consciência do nosso caminhar, vamos colecionando sutilezas e afetos. Nossa palavra, ação e pensamento começam a nos decifrar e a moldar nossa essência.Lembro de dois aprendizados que são constantes na minha vida, o primeiro é que palavra é mantra, o segundo é que somos capazes de mudar nossa vibração, sintonizar e atrair o que queremos. Eu estou escrevendo sobre o aprendizado de mais de trinta anos e só agora o que aprendi faz parte do cotidiano de muita gente e a física quântica está aí para provar cientificamente que somos energia e que as pessoas e lugares que frequentamos fazem parte do nosso campo e que é exatamente neste lugar e através do relacionamento com estas pessoas que estão todos os registros de memórias e experiências que precisamos para crescer. Portanto nossa família, e os lugares mais desfiadores para a nossa alma são colocados neste espaço e tempo cósmico para realizar transformações em nós. É como se a terra fosse o casulo e nós as lagartas sempre em mutação.Partindo sempre destes dois aprendizados que me acompanham, fui me refinando com o tempo e depois da dúvida, da certeza e da minha complexidade como pessoa que tem a pergunta como mantra. Fui ao teatro fazer uma apresentação de dança,eu fazia parte da programação. teatro cheio, a técnica do teatro toda afinada com a luz que pedi, música no ponto, maquiagem, figurino, tudo perfeito. Entro em cena com a plena certeza de que ia morrer. É sempre assim comigo, posso dançar quantas vezes forem necessárias, mas sempre tenho esta impressão de que estou me atirando no ar sem paraquedas ou rede de proteção.E o improvável aconteceu:estava em cena, concentrada, aguardando a música que começa suavemente, e de repente, a música pára de tocar, é interrompida.Em fração de segundos tinha que tomar uma decisão, o público me olhando sem saber de nada. Não ia morrer diante do público ávido de beleza e encantamento. Nunca! Comecei a dançar naquele silêncio único da platéia diante da minha presença sincera. E comecei a dançar sem música e comecei a preencher a música com a melodia da minha voz.Dançava e simultaneamente narrava com meu corpo acompanhada pela minha voz história narrada, com o instrumento de percussão que uso nos tornozelos. Eu era a melodia, era a percussão, a voz, o teatro e a dança. Fui razão, emoção e ação, ao vivo e a cores, sem edição e nenhuma muleta, era o aqui e agora sem medo. Eu que sempre escrevi sobre silêncio nas minhas postagens e quem me conhece sabe o quanto aprecio e busco o silêncio, viver o aqui e agora, equilibrar o agir, sentir e pensar, fui desafiada pela vida e não tinha como fugir de mim mesma.O fato é que me entreguei de corpo e alma a esta experiência de ser o meu erro, que me especializei tanto em errar e acertar que parece que o errado, o torto, o caos, o inusitado compõem a minha história de acertos, vivo na vertigem tentando segurar o espaço tempo na palma de minhas mãos.No final completamente preenchida de mim mesma, tive o privilégio de ouvir as palmas calorosas da platéia.Saí do teatro com o coração exposto, a alma lavada, mas ainda um pouquinho insegura. Como todo artista que se doa, palmas não significam muita coisa, tampouco tapinha nas costas dos amigos,tem algo dentro de nós que só nós sabemos, é um espaço que ninguém penetra, é nosso lado inefável, um cantinho da nossa alma que dialoga conosco o tempo todo, é metafísica e um outro eu que faz parte de nós. E saí do teatro sem falar com ninguém e fiquei pensando, se tinha cumprido com o meu papel, se minha voz tinha chegado até a platéia.Sou atriz de formação e profissão, mas tinha muito tempo que não atuava e não projetava minha voz.Para minha sorte o corpo tem memória. No dia seguinte, antes de minha apresentação, primeiro os técnicos vieram de uma forma vibrante me elogiar e que ficaram desesperados na cabine diante do inusitado caso da dançarina dançar sem música, apesar de que na dança contemporânea música é só um detalhe, a dança transcendeu a música, assim como as artes visuais transcenderam a moldura e a música os músicos, muitas vezes os sons são produzidos por máquinas. Depois recebi o elogio de amigos sinceros, e dei de presente para eles o benefício da dúvida, pois saíram do teatro perguntando se se eu tinha planejado executar minha dança daquela forma ou se era falha técnica, ou trágica. Num mundo pontuado por certezas, onde todo mundo tem opinião formada e sabe muito de coisa nenhuma, foi surpreendente deixar tudo no ar sem resposta, deixar a imaginação continuar funcionando depois de uma apresentação,como num filme de final insólito, onde você precisa criar o seu próprio final e ligar os fatos narrados.Por isso gosto muito da "jornada do herói", elemento essencial para nos identificarmos com alguma narrativa e base para noventa por cento dos roteiros de cinema e afins. Porque é um traço da nossa humanidade, errar, fugir, voltar, refletir, e encontrar uma saída para mudar o mundo, ou no mínimo mudar a si mesmo. O monomito também chamado de "jornada do herói" foi escrito por Joseph Campbell,um estudioso de mitologia e religião (1904-1987) é um conceito da jornada de um determinado personagem, presente nos mitos. O termo aparece primeiro no seu livro, o Herói de mil faces. Esse padrão monomito pode ser encontrado desde a narrativa clássica de Prometeu,até por exemplo na saga Star wars do George Lucas e Matrix, vou ficar só nestes dois exemplos. É uma abordagem que inclui as forças inconscientes do Freud,o conceito Junguiano de arquétipos e a estrutura do ritos de passagens de Arnold Van Gennep. No fim de minha jornada percebi a minha pergunta para esse momento, porque escondi minha voz? O que meu silêncio quer falar e não estou dando ouvidos? Mas ao mesmo tempo que sigo perguntando, eu sei o quanto me sinto integrada e honrada a mim mesma por ter me vencido.

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