DANÇAR OS ANSEIOS DA ALMA

“Sapatinhos Vermelhos”, interpretado à luz da psicanálise no livro “Mulheres Correm com os Lobos” por Clarissa Pinkólas Ester.
A história tem várias versões nos detalhes, mas no geral é resumidamente o seguinte:
Uma menina pobre e sozinha mora em uma cabana, na floresta. É tão pobre que nem sapatos tem e seu grande sonho é ter um par de sapatos vermelhos. Ela mesma fez um par de sapatos vermelhos de pano, com os retalhos que encontrava. Ela adorava esse sapatos e usá-los fazia com que se sentisse feliz, mesmo frente às dificuldade diárias pela sobrevivência.
Quando andava pela estrada, acabou encantando uma velha muito rica que resolveu criá-la como filha. Ao chegar à mansão, foi banhada, penteada e vestida. Seus sapatos de retalhos, jogados fora.
A menina agora era obrigada a ficar sentada, quietinha, o dia todo. Não podia comer com as mãos. Não podia correr ou pular, ou rolar na grama. E, quanto mais o tempo passava, mais falta ela sentia de seus lindos sapatinhos vermelhos feitos à mão.
Um dia, a velha levou a menina a um velho sapateiro aleijado, que era considerado muito bom, para fazer um par de sapatos novos para a ocasião especial. Na vitrine do sapateiro havia um lindo par de sapatos vermelhos, do melhor couro. A menina escolheu os sapatos vermelhos.
Usando-os foi à missa com a velha e na saída, um velho soldado disse para a menina “que belas sapatilhas para dançar”. E a menina, mesmo sem querer, começou a rodopiar ali mesmo.
Ela continuou dançando, dando voltas, fazendo piruetas. Todos corriam atrás, assustados. Finalmente, um grupo de pessoas conseguiu segurá-la, e o cocheiro arrancou os sapatos vermelhos, com grande dificuldade, dos pés da menina. Os sapatos foram colocados no fundo do armário, com a ordem de que ela jamais colocasse eles nos pés novamente. A menina, entretanto, não conseguia parar de pensar nos sapatos. Muitas vezes abria o armário, e ficava espiando os seus lindos sapatinhos vermelhos.
Sem resistir ao desejo, desobedeceu a velha e pôs nos pés os sapatos vermelhos. Imediatamente, começou a dançar, rodopiar, bailar. E assim ela saiu de casa, dançando, e atravessou a propriedade, dançando, e chegou na floresta, dançando. Exausta, tentava, vez por outra, arrancá-los. Mas não conseguia. Por fim, procurou o carrasco de uma aldeia, e lhe implorou que cortasse os sapatos. O carrasco tentou, mas não conseguiu. Desesperada, a menina disse “então corte-me os pés, não posso viver dançando”. O carrasco, penalizado e implorando perdão a ela e a Deus, cortou seus pés, com lágrimas nos olhos. E os seus pés, com sapatinhos vermelhos e tudo, continuaram dançando, dançando, dançando, pelo mundo afora.
Nem parece conto de fadas para crianças de tão horrível, cruel e real a história. Mas ela se encaixa na maneira como às vezes colocamos nossos sapatinhos vermelhos, respondendo ao mundo externo, dançando, dançando, dançando freneticamente, e nos esquecendo de nosso próprio ritmo, de nossas necessidades de alma.
Periodicamente a vida nos lembra, com algum fato ou situação chocante, qual o valor do nosso sapatinho feito à mão, costurado por retalhos. Não é tão lindo e nem tão brilhante quanto o par de verniz na vitrine do outro (sempre é a do outro), mas tem o nosso cheiro, é único, original, representa e conta quem somos nós.
Assim como na história infantil, nos fascinamos por algo que vemos ao longe e que, na maioria das vezes, não nos traz qualquer satisfação ou felicidade. Deixamos de viver o aqui e o agora com a alma, na expectativa do que viveremos nossos anseios no futuro: depois que os filhos crescerem, depois que a aposentadoria chegar, depois de pagar a hipoteca da casa, depois, depois, depois…
Abrimos mão daquilo que desejamos por aquilo que achamos que desejamos ou o que percebemos que os outros desejam para nós.
Deixamos que os sapatinhos “amaldiçoados” se grudem em nossos pés e nos ponham para dançar uma música que sequer ouvimos. Movimentos frenéticos que levam muitos à beira da loucura e até mesmo à automutilação para se livrar desse par vermelho diabólico.
Considero que episódios de pânico, ansiedade, depressão e até tédio, sejam indícios de que podemos estar com o par de sapatos errados. A maneira como vemos o tempo passar sem nos darmos conta também denuncia nosso ritmo antinatural.
Quem se interessar por uma análise mais detalhada deste conto pode, além do livro da Clarissa Pinkólas, acessar o site:http://www.femininoplural.com.br/fogo/lenda/sapatoensina.html. Gostei da abordagem e da maneira direta pela qual os símbolos são decifrados e interpretados. Vale a pena conferir e refletir. Muitos insights…

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