Atriz e bailarina Amélie Ségarra dançando com facas presa a sapatilhas

"Quando “Cisne Negro” chegou aos cinemas, pudemos ver uma nova faceta do ballet pela ótica da personagem Nina, interpretada com maestria por Natalie Portman. A jovem encarnava o medo e a fragilidade que se exigia ao papel de cisne branco, mas também precisava encarnar o oposto: a sensualidade e o perigo do cisne negro. A dualidade entre as características dos cisnes revela a dificuldade técnica em se assumir papéis muito díspares. Mais ainda: traz à tona os limites que, por vezes, o artista ultrapassa para atingir a perfeição.
Sabemos que o ballet exige não somente disciplina, mas sacrifício. A figura da bailarina muitas vezes foi envolta pelo ideário da jovem delicada e pura, com gestos e passos calculados e inocentes. Mas o que o filme “Cisne Negro” prova é que os bastidores e a escalada da bailarina até o momento em que o indescritível acontece – a perfeição dos passos – podem ser mais doentios e insanos do que imaginamos. Só vemos tule, brilho e elegância. A arte pode envolver sacrifícios. E a bailarina é a figura que encarna esse desafio com o próprio corpo.
Após essas considerações, pensemos no significado do vídeo abaixo. Ele foi feito pelo artista basco Javier Pérez. O vídeo nomeado En Puntas traz a bailarina Amélie Ségarra numa situação, no mínimo, perturbadora: ela se equilibra surpreendentemente na ponta de facas afiadas, em cima de um piano. Antes de continuar a leitura desse texto, veja primeiro o vídeo que tem, no máximo, 3 minutos. Vale experimentar por si mesmo.
Exclamações definiriam melhor a impressão que essa performance deixa no espectador. É difícil não se sobressaltar diante da tensão interminável do vídeo. Ela já começa ao ouvirmos a música delicada que sai de uma caixinha de música, segurada por uma única pessoa numa plateia quase fantasmagórica de tão vazia. A bailarina calça as sapatilhas atreladas às facas e se ergue por uma corda.
Aos poucos, já nos vemos inteiramente envolvidos, encarando os pés da bailarina, temerosos. O risco que a faca traça no piano arrepia. Porém, os gritos agudos da bailarina deixam marcas mais intensas do que aqueles riscos. Não dá para distinguir se os gritos são mera ficção e parte do espetáculo ou se ela sente dor e medo de cair. Uma pergunta que ficará sem resposta é quantos ensaios a bailarina teve para, finalmente, ficar na ponta das facas. Ou se ela se arriscou numa única tentativa.
Aos poucos, os passos que antes eram extremamente pesados se tornam mais leves e seguros, mas ainda definidos pela dor e pelo grito. O curioso é ver que a bailarina, por vezes, parece brincar com a nossa tensão, ampliando os riscos no piano a fim de esperar pela nossa reação. Ela não ouve, não vê ninguém. Não há crítica na plateia. A brincadeira se dá entre ela e o próprio corpo, mas nós, espectadores, somos quase a consciência da bailarina, que gosta de provar para si mesma (e para nós) o que ela pode fazer diante desse desafio.
A bailarina finaliza a performance sem aplausos. O que isso nos leva a pensar? A apresentação não deixa de ser uma bela metáfora de todos os anos de ensaio e aperfeiçoamento da artista. A plateia tem acesso ao produto final. Na verdade, o que não vemos são esses passos titubeantes no início de carreira e nem a dor intensa que as sapatilhas provocam sempre. Logo, as sapatilhas – e as facas, nessa apresentação – tornam-se parte do corpo da bailarina. Elas são a expressão de seu sacrifício e de sua arte.
O vídeo mexe com nossos sentidos. Ele quebra com a perspectiva que temos do ballet como uma expressão delicada do corpo. Ele é brusco, violento também. Colocar a bailarina numa situação-limite não chega a estar desvinculado de cada ensaio que é ultrapassado por ela durante a sua vida. Obviamente, as dores sentidas com as sapatilhas deixam marcas como os riscos no piano. E são acompanhados pelos gritos que, incrivelmente, continuam a soar na mente do espectador após o final da performance. Talvez sejamos a verdadeira plateia da bailarina. O aplauso seria vazio para tamanha entrega. O silêncio nos deixa atônitos e marca o último passo da perfeição."

Sobre o autor

 ,20 anos, graduanda em Filosofia na USP. Escritora e cinéfila em formação, acha que qualquer dia desses vai se afogar na pilha de livros que precisa ler. Tem muito amor por sua biblioteca particular composta pelo primeiro livro que leu na vida, um infantil sobre Picasso, aos 7 anos, até as obras de Filosofia e Estética, que certamente vai reler até ficar velhinha. Bem lá no fundo acredita que Woody Allen vigiou seus sonhos e, assim, resolveu escrever o roteiro de Meia-Noite em Paris. Mantém o blog: http://marinafranconeti.wordpress.com/

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