O CORPO- ENTRE A COREOGRAFIA E A HABITAÇÃO


"De uma forma geral pode-se dizer que a questão essencial da arquitetura contemporânea é a sua relação com o evento; não a relação com o espaço ou o tempo de forma isolada, mas sim a relação com o evento enquanto acontecimento que não se repete, dotado de uma singularidade espaço-temporal. Assim, a questão que tem preocupado os arquitetos que praticam uma arquitetura investigativa é exatamente o jogo entre a determinação e a indeterminação de seus projetos e dos lugares deles resultantes. Em outras palavras qual o grau de liberdade dado ao habitante, usuário de espaços que prescrevem usos e modos de comportamento. E a grande aposta é o uso da indeterminação como abertura para a possibilidade de criação. Esta parece ser também uma questão essencial para a dança contemporânea – a relação entre a pré-determinação coreográfica dos movimentos e a liberdade de invenção no ato da dança, ou seja, qual o grau de liberdade entre o coreógrafo e o bailarino. A consideração dessa tensão entre um planejamento prévio e a invenção no ato do evento, na verdade, aponta para a consideração do tempo como algo irreversível (a flecha do tempo, como nos recorda Ilya Prigogine), que impossibilita a repetição idêntica de um mesmo evento, e por isso mesmo traz em si a possibilidade da criação.
No que concerne à Arquitetura, a questão se esclarece quando entendemos uma mudança de abordagem feita pelos arquitetos contemporâneos, que deslocam a arquitetura do âmbito dos objetos para o âmbito das relações, ou seja, deixam de ver a arquitetura como a edificação pura e simples (o objeto em sua materialidade) e passam a abordá-la como o conjunto de interações que acontece entre os habitantes, mediados pela edificação. Na verdade, se olharmos desde o seu surgimento e as suas mais antigas manifestações, assistimos a uma crescente desmaterialização da arquitetura: das pirâmides egípcias que eram pura massa às catedrais góticas permeadas de luz; dos volumes transparentes e interpenetrantes da arquitetura moderna aos espaços fluidos e imateriais das arquiteturas do ciberespaço. Essa evolução, de fato, mostra um distanciamento cada vez maior do caráter objetual da arquitetura e a ênfase sobre aquilo que parece ser o fundamento da arquitetura, o seu caráter de vazio que articula eticamente as pessoas. Assim, a Arquitetura assume-se cada vez mais como um vazio relacional, onde a injunções do habitante enquanto um sujeito desejante passam a ser prioritárias.
Essa desmaterialização do objeto arquitetônico ocorrido ao longo dos tempos parece acompanhar um progressivo distanciamento entre o corpo e a edificação, apontado por Anthony Vidler em seu livro The architectural uncanny. Na antiguidade o edifício buscava uma analogia ao corpo em termos de proporção e simetria – as catedrais simbolizavam o corpo de Cristo. Posteriormente o edifício passa a expressar sentimentos mais abstratos baseados nas sensações corporais. Já no século vinte o edifício não guarda mais nenhuma relação metafórica direta com o corpo humano, mas sim com um animismo mais abrangente, no qual a edificação é vista como um organismo, que cresce, respira, se transforma e envelhece.
Ma se por um lado a associação entre o corpo e a edificação sofre um distanciamento, se considerarmos a arquitetura não mais como a edificação, mas sim como o vazio relacional onde se dá o encontro entre os habitantes, veremos que o corpo passa a ter um papel de crescente importância. Diante da irreversibilidade do tempo o corpo se transforma em peça chave da arquitetura como o agente que articula o tempo e o espaço no evento, dentro de uma relação cada vez maior com a indeterminação. Se no início do século XX Le Corbusier, um dos expoentes da arquitetura moderna, propunha o passeio arquitetural como uma grande inovação, no qual o habitante desvelaria a arquitetura ao percorrê-la, vemos hoje arquiteturas onde o corpo não só desvela o espaço, mas na verdade altera as qualidades do próprio espaço quando nele se movimenta. Aqui o corpo não é mais apenas referência analógica para a construção da edificação, e nem é apenas o elemento que descobre a arquitetura, aqui o corpo com seu movimento passa efetivamente a construir a arquitetura, certamente uma arquitetura que se faz e se refaz na relação com o habitante.
É curioso notar que ao longo da história da arquitetura praticamente todas as referências ao corpo dizem respeito ao corpo masculino, e talvez pudéssemos arriscar que esta referência é menos à idéia do corpo que à idéia do falo, daí a excessiva ênfase no caráter objetual da arquitetura. Uma verdadeira consideração do corpo vai gerar uma arquitetura de caráter mais feminino, uma arquitetura da interioridade e da recepção. Mas o que dizer de uma arquitetura da indeterminação, de uma arquitetura que se faz e se desfaz, que busca o trânsito entre uma forma e outra? Aaron Betsky, não sem polêmica, propõe que essas novas abordagens sejam relacionadas ao que ele chama de corpo queer, em que estas distinções entre o masculino e o feminino ganham outras nuances e possibilidades de intercâmbio."
José dos Santos Cabral Filho

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