Marina Abramovic

Arte e dor: Marina Abramović faz palestra em Londres só para mulheres
Performática mais prestigiada do mundo testa os limites do corpo, cruza olhares e diz que usa a dor para melhor entendê-la





São cinco da tarde, domingo de sol e 900 mulheres de todos os sotaques do mundo ocupam o auditório do Southbank Centre, em Londres, à espera da artista sérvia Marina Abramović, a avó da performance. Aos 65 anos, é a primeira vez que ela se expõe com exclusividade para o público feminino, apesar de acreditar que a arte não tem gênero. Na mesma sala, diferentes nacionalidades, olhares, estilos e desejos se concentram para o telão que antecede sua chegada. Nele, todas as dores - ou obras - de Marina fisgam a plateia ansiosa que ovaciona ao ouvir a frase: "Bem-vindas à revolução."

Thais Caramico/Opera Mundi

Marina Abramović em ação: a sérvia, nascida em Belgrado, é uma das artistas mais celebradas do mundo

Marina é daquelas mulheres fortes, cuja arte dialoga com a dor o tempo todo e por isso o tema da palestra: "O espírito não queima, seja qual for a condição". Sangue, cortes e olhar profundo de quem se doa ao tempo, esses são seus elementos usados no próprio corpo desde 1971, quando começou sua carreira. A resistência e o aumento da consciência são partes do processo, como quem sofre num segundo, com a certeza de que o sentimento é efêmero. "Sinto dor, mas passa. Na vida das pessoas é assim também", diz.

Entre suas performances, já questionou a beleza escovando o cabelo até o couro sangrar, desmaiou dentro de um pentagrama em chamas e cortou em volta do umbigo a estrela do comunismo. Também deitou nua com uma caveira e caminhou 2.500 quilômetros na Muralha da China para conseguir terminar um relacionamento. Em 1974, deitou numa mesa por seis horas e ofereceu o corpo à plateia, que podia usar qualquer um dos 72 objetos que a rodeavam. Havia faca e revólver, mas terminou sem blusa, chorando e com pétalas de rosa nos mamilos, carregada feito santa.

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Marina artista, nascida em Belgrado, é uma mulher natural que revela investigar a dor porque precisa conviver melhor com ela. "Faço performances com dor porque preciso controlá-la. Quando você aprende a controlar sua alma da dor, você passa a confiar no espírito e entender que você é algo temporário, que não tem de ter medo da morte", explica. Questiona-se o tempo todo, desde criança, sobre seu papel no mundo e o que faz aqui. E sorri ao lembrar que a melhor explicação não veio dos livros ou da psicanálise, mas de um xamã que, sem saber qualquer coisa sobre ela, lhe disse durante um ritual: "Não sei quem você é, de onde é e o que faz. Mas sua missão aqui é entender a dor e conviver com ela." Isso foi no Brasil, um dos refúgios de Marina.

No palco londrino, ela entra vestida de preto, cabelos repartidos ao meio e trança baixa, como sempre. Está nervosa, mas se mantém em fala plácida avisando que não está ali para discutir políticas feministas, mas para mostrar um pouco do que faz a um público especial. "A arte não tem gênero. Pode ser boa, ruim ou até mais ou menos. Mas nunca feminina ou masculina. Acontece que ser artista mulher é difícil, porque nossa dedicação ao mundo, como mãe, esposa e dona de casa exigem muito, e arte é uma coisa em que é preciso estar presente o tempo todo."

Tempo, ela alerta, só existe porque estamos sempre preocupados com o passado e o futuro e nos esquecemos do mais importante, que é viver o presente. Diz então que não há performance boa sem tempo, pois a matéria não preenche a arte, afinal, não é um produto. "A performance está ligada ao estado da mente e só é capaz de fazer isso, desde muitos anos atrás, quem vive o momento. Maria Callas quando canta, Pina Bausch quando dança, isso é performance", dá exemplos enquanto mostra trechos de apresentações que ama por simplesmente estarem focadas no momento.

MoMa/Divulgação
Nesse conceito de duração é que Marina trabalha boa parte de suas obras. Em "Relação com o Tempo", de 1977, ela sentou-se de costas para o ex-marido, o artista alemão Ulay. Eles prenderam os cabelos com um laço e ficaram 16 horas imóveis.

Em 2010, o MoMA de Nova York recebeu em sua retrospectiva 850 mil visitantes. Na obra principal estava Marina de carne e osso. Por 77 dias, sete horas diárias, a artista permaneceu sentada numa mesa em que o espectador chegava e trocava olhares por quanto tempo aguentasse. Muita gente chorou, o que deu origem a um site chamado "Marina Me Fez Chorar", e a um trecho do recém-lançado documentário A Artista Está Presente.

Minutos antes de encerrar a palestra, Marina sai do palco e retorna nua, com folhas de sulfite usadas para grifar seu "Manifesto Sobre a Vida do Artista", 18 trechos sobre o que considera ser a relação com a arte, pensamentos em defesa de que "o artista não pode se apaixonar por outro artista"; "o artista deve ter uma visão erótica do mundo"; "o sofrimento leva o artista a transcender seu espírito"; "a depressão não é produtiva para os artistas"; "o artista deve criar um espaço para que o silêncio adentre sua obra" e que termina com "o artista deve deixar instruções para seu próprio funeral, para que tudo seja feito segundo sua vontade".

A sérvia joga as folhas no chão, pede às 900 mulheres da plateia que levantem e permaneçam em silêncio por três minutos. Diz que é para pensar em nada além do que o momento presente dentro daquele lugar e reforça a ação lembrando que ela está ali, em corpo e espírito. Numa ausência completa de ruídos, ela mantém os olhos abertos e levanta os braços lentamente. Agradece por estar ali e, bastante emocionada com a troca de energias, coloca a mão no peito e depois na cabeça, enquanto recebe mais uma onda de fortes aplausos seguidos por adjetivos de uma só natureza, em todos os sotaques.

 Texto: ópera mundi

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